Quando pensei em voltar a escrever sobre cinema, eu sempre quis fugir dos “padrões” críticos. Queria fazer textos que fizessem uma análise, mas que a minha figura estivesse sempre presente neles, uma visão muito pessoal sobre a obra analisada com o pouco conhecimento que tenho sobre cinema. Com isso, nos meus primeiros textos, sempre tentei deixar marcas, visões e percepções que vivi com temas que se relacionam com o filme e também com o processo de assistir ao filme. Nesse contexto, ao falar de Deadpool e Wolverine, o que me motiva a escrever vem de fora, vem de uma discussão – um tanto insuportável – da internet perante a recepção do filme.
O filme tem dividido as opiniões. Críticos estão detonando o filme e fãs – que inicialmente nem tinham assistido ao filme – defendendo, usando os mais diversos argumentos que, na sua maioria, deixam uma imagem ainda mais negativa sobre o filme em si e sobre todo o gênero de super-heróis e a seita que parece ter se formado ao seu redor. Dentro dessa discussão, o principal ponto é que o filme "promete" um tom mais "besteirol", e por de fato entregar isso, ele se livra de qualquer aspecto crítico, já que ele promete ser "ruim" e entrega o "ruim". Mas será que isso é realmente válido? Será que um filme entregar aquilo que ele "promete" se torna imune a qualquer crítica negativa? Mas, afinal, o que um filme promete ao público – se é que promete – e isso é de fato relevante?
Deadpool e Wolverine é o 3º filme do personagem e o primeiro integrado ao universo Marvel. Nele vemos a aventura do Deadpool (mais uma vez interpretado pelo Ryan Reynolds) indo atrás de um Wolverine pelo multiverso (com o Hugh Jackman voltando ao papel) para poder salvar seu universo de ser apagado pela AVT (agência mostrada na série Loki que faz a manutenção das diversas linhas do tempo e do multiverso Marvel).
Deadpool surge num contexto controverso que são os anos 90 dos quadrinhos, criado por Rob Liefield - um artista bastante questionado quanto à sua qualidade (principalmente relacionado ao seu conhecimento anatômico). Desde o início envolvido em polêmicas, Wade Wilson é uma cópia descarada do personagem da DC conhecido como Exterminador, cujo nome é Slade Wilson (nem precisa dizer, né...), surgindo num contexto de vilão na revista Novos Mutantes. Ao longo do tempo, o personagem evolui, e com suas características de "tagarela" ganha popularidade e particularidades, evoluindo para revistas próprias e ganhando um ar único que se torna interessante e complexo em alguns momentos, mesmo dentro da sua limitação de personagem escatológico e com um humor “pesado”.
Em seu início, o personagem era apenas uma versão de mais um mercenário com piadinhas, mas que foi "amadurecendo" e ganhando ar de realmente se tornar uma paródia autoconsciente daquele mundo de absurdos, uma sátira interna que pode romper amarras e, de dentro do seu próprio mundo, brincar com os erros e acertos da própria editora. E lembrando todo um contexto turbulento dos anos 90, onde a Marvel quase faliu, Deadpool parece uma figura que serve como uma resposta, um absurdo diante de um fim quase iminente, da decadência que o ronda. Pena que poucos conseguem entender o potencial do personagem mesmo nos quadrinhos, onde seu lado mais verborrágico soa como preguiçoso até mesmo para um personagem essencialmente pastelão, irônico, satírico, sendo utilizado como um humor do absurdo que muitas vezes soa vazio.
Mas, ainda assim, é um personagem popular, muitas vezes sendo utilizado como um escape, uma fuga do aprofundamento e da seriedade que permeava a tentativa dos quadrinhos da época. E este é um valor a ser mantido também no personagem, e dentro dessas e muitas outras facetas que o mercenário tagarela viaja entre herói e vilão, entre o absurdo e o “pé no chão”. Deadpool surge como essa promessa de readaptação e reposicionamento de um universo, um mundo se adequando a uma modernidade que entende a saturação, mas que não abandona o aspecto nostálgico, então tira sarro e se autoreferencia em sua decadência e falhas ainda em um tom arrogante e orgulhoso, onde nos outros 2 primeiros filmes já tinha se apresentado e se constituído para o público de tal forma dentro do universo X-Men da FOX.
A expectativa então se cumpre, em Deadpool e Wolverine, a comédia pastelão e extremamente gráfica e violenta mantém a essência controversa do personagem – tanto nos temas das piadas como na inconstância do banal com o interessante – o filme utiliza uma premissa básica e assume uma postura de despedida. O fim do mundo do Wade é uma tentativa de homenagear e se despedir de toda uma era de universo Fox, que traz inúmeras referências e cameos para gerar comoção e nostalgia, além de valorizar os primeiros passos do mundo dos heróis no cinema e manter uma memória viva.
Numa também tentativa, o humor presente está para satirizar o momento atual do cinema de heróis, principalmente o universo Marvel. Aqui o paralelo daquilo que constitui o personagem ao longo do tempo nos quadrinhos é revivido numa proposta de utilizá-lo como uma venda de autocrítica, uma consciência que faz piada do próprio estúdio e reconhece os erros e em certo ponto tenta “consertar”, recomeçar, reviver... Não à toa o próprio personagem se autointitula “Jesus da Marvel”, o salvador, numa irônica “crítica”, mas também com uma verdadeira intenção do filme em atrair público e ressignificar seu universo. E claro, tudo isso é apresentado na forma e no jeito “clássico” do Deadpool. É extremamente gráfico e verborrágico, com ironia, com (mais uma vez) sátiras; tudo gratuito, sem motivo, vazio, sendo a piada pela piada e a homenagem pela homenagem, nada se conecta ou tenta trazer uma emoção além, ou trabalhar as próprias piadas ou homenagens de forma a constituir uma imagem interessante ou significante que marque, que faça tecer o mínimo que um filme possa entregar.
De fato, o filme é aquilo que “prometem”, o filme possui, de certa forma, a essência do Deadpool, e utiliza ao máximo ela para reforçar sua importância, sua existência. Porém, ainda que cumpra isso tudo, o filme não consegue ser um filme, o filme em sua essência como cinema não se cumpre, e quando colocamos isso como uma obra em si há muito mais coisas que podemos dizer serem “prometidas” que não se encontram presentes em momento nenhum.
Em suas enxurradas de piadas, onde a maioria tem o propósito de reforçar sua inserção no MCU, o filme não passa nada além de um pedantismo digno de pena, onde toda piada é previsível o bastante ao ponto de perder a graça e beirar uma vergonha que mais aproxima a tragédia do que estamos vendo em cena. O filme apenas funciona no propósito de levar à próxima piada e à próxima luta, filmado de uma maneira blasé, com uma construção de universo extremamente superficial onde em nenhum momento convence a ser imersivo (outro momento que é digno de pena é uma tentativa de emular um Mad Max com um mundo devastado, mas que em momento algum convence de seu vazio e vastidão ou até mesmo da urgência da ação pretendida, o motivo que move os personagens perante ao mundo é vazio).
A imagem aqui é unicamente feita com o propósito de entregar um fan-service; mostrar uma roupa, um ator do passado, uma posição de luta. Ela é construída apenas como um único momento, sem sequência, sem nenhum discurso minimamente interessante até para os padrões do Deadpool. A entrega aqui de um objeto cinematográfico onde se tenta inserir o absurdo do personagem é traída pela sua própria premissa, a ironia aqui não está na sátira, mas na subversão da própria consigo mesma, onde a piada é o próprio filme e não o que está sendo dito.
Então, Deadpool e Wolverine é tudo aquilo que prometeram, ele entrega o que foi dito que entregariam, o filme tem ideias..., mas tudo executado de uma forma extremamente limitante para o real potencial do personagem, um filme que se prende nas convenções e nas “promessas” que não ousa ir além e que acaba traindo o verdadeiro propósito do absurdo que está de fato no cerne do personagem.
E pra finalizar, ao tentar responder às perguntas que me motivaram a escrever, eu diria que Deadpool e Wolverine é um exemplo perfeito para a falta de entendimento do que é um pensamento crítico e do verdadeiro papel da crítica. A crítica, e aqui utilizo como foco a cinematográfica, tem como objetivo a expansão do filme além da superfície, além do banal. É pensar o filme para além do que ele “promete”, porque pouco importa o que se vende ou promete de um filme, e sim o que o filme é, em como ele mostra aquilo que é. E o papel do crítico é mostrar sua visão perante esse olhar do que de fato é e contextualizar, expandir e valorizar a obra por si e não pela promessa do que era pra ser ou do que virá a ser a seguir.
Se num filme de super-herói é vendido como “lixo” (termo que muitos usaram na internet pra defender o filme), o filme verdadeiramente for um “lixo”, não isenta este da análise crítica, pois a forma como ele é mostrado é o que faz parte da análise de fato e ao aceitar tais alcunhas gera uma padronização da mediocridade e do consumo, gerando ainda mais filmes verdadeiramente ruins. E o que aceitamos hoje com uma premissa de “ruim” amanhã decretará de fato o fim de um gênero que podia entregar mais e que já entregou coisas extremamente interessantes e diversas, com um exemplo mais recente dentro da própria Marvel que é o Guardiões da Galáxia 3. A “salvação” é nesse caso é apenas mais um prego no caixão.
O cinema de herói e a cultura nerd é uma enorme caixa de insegurança, a projeção em cima das obras desse universo é recheada de problemas e traumas que, ao mínimo questionamento do seu status, é motivo de uma defesa irracional por parte daqueles que se dizem nerd (que no fundo a maioria são crianças com problemas de amadurecimento). Com isso, geram-se inúmeros movimentos extremamente problemáticos (até mesmo criminosos) nesse meio que ignoram a ideia de pensamento crítico, e o que poderia ser consolidado como um gênero cinematográfico, amadurecendo suas potencialidades e linguagens, acaba sendo um refúgio de fantasias reacionárias e protofascistas, servindo a uma lógica de capital que explora essa fragilidade e infantilidade de mentes conturbadas e doentes que se recusam a crescer minimamente até mesmo para um estilo de história tão banal quanto o humor pastelão.






