A ideia de voltar a escrever sobre cinema surge da necessidade de reafirmar minha paixão por essa arte, uma arte que muitas vezes conseguiu atingir sentimentos que eu nunca imaginei que iria ter ou sentir. Mad Max: Fury Road, de 2015, foi um filme que surgiu no início da minha cinefilia, um filme que me fez entender o poder do uso da imagem para construir um universo único e particular, onde a loucura humana é exposta na sua forma mais selvagem e insana, e que, por mais absurda que seja, ganha proximidades assustadoras com a realidade. Algo que nos anos seguintes ficaria ainda mais latente, afinal várias crises com a liderança de palhaços caricatos com seguidores fanáticos levaram a uma escassez de suprimentos. O combustível (algo precioso como ouro nos filmes) teve suas próprias crises com aumentos absurdos e até filas enormes durante a greve dos caminhoneiros em 2018.
"Furiosa" nasce de um projeto que era para ser lançado junto a esse filme. Um projeto ambicioso que contaria com três frentes: o filme Fury Road, um jogo de videogame (que depois viria a se tornar o jogo Mad Max, também lançado em 2015, mas com apenas alguns conceitos reutilizados do que seria o jogo original do filme), e uma produção contando a origem de Furiosa, personagem que rouba a cena do filme de 2015.
Nesse filme de 2024, ‘Furiosa: Uma História de Mad Max’, o antigo elo do projeto que contaria a origem/história da personagem é retomado, explorando o que antes era uma personagem misteriosa – e que tinha um ar fascinante nisso, pois víamos uma dureza e ao mesmo tempo uma compaixão na personagem, mas não tínhamos (e nem precisávamos) uma resposta para isso. Agora, ganha contexto, entendemos o que molda a personagem, quem ela era e como se tornou o que vimos anteriormente.
Buscando uma sinopse, o filme é a história de Furiosa (Anya Taylor-Joy), que, quando criança, é sequestrada por motoqueiros do lugar onde vivia - um lugar de abundância em meio ao deserto sem esperança e de loucura - para ser levada ao líder do bando, Dr. Dementus (Chris Hemsworth), que acaba por matar sua mãe, que tentava recuperá-la. Em meio à vastidão do deserto, à procura do local natal de Furiosa, eles encontram a cidadela, o que inicia um jogo de disputa de poder entre os insanos senhores de guerra.
O universo de Mad Max é um reflexo do mundo que se tornou o reflexo daquilo que fizeram dele. A insanidade e o absurdo das guerras expõem os lados mais selvagens da humanidade, como se as próprias guerras não destruíssem apenas o mundo, transformando-o em deserto, mas qualquer tipo de máscara que escondia a verdadeira face humana perante o outro.
E é nesse contexto, já tão bem estabelecido, que vemos a construção da personagem. Vemos ela se moldando, se tornando o reflexo daquilo que fazem dela, do contexto em que vive, da vingança que busca. Furiosa é uma personagem moldada por esse mundo que a faz ser fria, impiedosa, de poucas palavras e muita ação. Mas Furiosa é mais do que apenas um reflexo, ou melhor, o reflexo dela tem mais camadas do que apenas a destruição do homem e da guerra. Furiosa é também o reflexo de sua origem, de sua infância em um meio abundante e com a esperança de voltar a esse lugar. Mesmo com a desesperança reinando em Westland (o deserto), ainda há um lugar, uma casa, uma volta à infância que a faz se permitir ser além dos moldes do desespero desse universo.
Toda a odisseia da personagem é demonstrada em capítulos, onde cada um deles vai construindo e desconstruindo ideias, conceitos e perspectivas inerentes à personagem, mostrando sua formação e desconstrução. A narração em tom de lenda feita pelo misterioso personagem Historiador provoca a sensação de uma lenda sendo contada, uma mitologia sendo formada de uma figura singular daquele mundo.
Essa construção da figura mitológica em torno da protagonista é reforçada pelo estilo do próprio filme em demonstrar seus feitos e seu destaque dentro daquele mundo. George Miller usa aqui, mais uma vez, efeitos práticos na ação, que, auxiliados por uso digital e uma queda do frame rate, causam tanto uma estranheza singular deste universo como um frenesi de urgência, que potencializa cada ato realizado e destaca o foco da Anya Taylor-Joy em manter uma expressão impassível durante toda a ação. Mesmo que o peso do absurdo ainda caia sobre ela, a remota lembrança daquilo que a mantém viva é refletida através da expressão gritante nos olhos, lugar onde não conseguimos esconder a dor que guardamos.
Enquanto o poder da imagem, da cena, do quadro tão bem elaborados e construídos pelo diretor e toda a equipe ajuda a construir e reforçar toda a mística da personagem, quando acontece de expor isso através do que não seja a imagem, seja no diálogo ou interações que fogem da construção de cena, o filme acaba por perder poder, soando expositivo aquilo que se construía tão belo no meio do caos.
Com mais espaço para respirar, mas ao mesmo tempo insano como Fury Road, "Furiosa: Uma História Mad Max" consegue trazer uma ação que infelizmente pouco se vê no cinema atual. Embarca na já consolidada e distópica ambientação para mais uma vez dialogar sobre os moldes da guerra, a falta de esperança e de significado, discute o peso da vingança e o que isso traz, mas evolui para a construção da dualidade de uma personagem que é moldada para se tornar algo mas que no fundo mantém sua independência desse molde.
Furiosa é um conto que expande a figura tão fascinante do filme de 2015 a ponto de querermos entender melhor algo que não sabíamos que queríamos. Um filme que expande um universo, abre possibilidades e que entrega mais rigidez a temas abordados anteriormente, que, se antes pareciam um futuro distópico, hoje soam como um presente.