A primeira vez que assisti a "Godzilla Minus One", na época de seu lançamento, foi em um cinema semimorto da cidade em uma sessão com no máximo 15 pessoas numa sala com capacidade para cerca de 60. Ainda assim, um milagre! Filmes como "Godzilla Minus One", que fogem do circuito de produção americano – esta é uma produção 100% japonesa –, são eventos raros na cidade e, mesmo assim, geraram pouco público e ficaram apenas uma semana em cartaz.
Dado os recentes fracassos de bilheteria no cinema, trazer esse filme para exibição em uma cidade pequena do interior do Rio de Janeiro, onde a grande maioria da população não tem a cultura da cinefilia, era um risco – um risco de certa forma justificável, já que após um grande empreendimento inaugurar, trazendo consigo uma grande rede de cinemas para a cidade, os antigos proprietários (que também pertencem a uma rede, porém menor) tiveram que tentar inovar, trazendo uma diversidade que até então não praticavam para alcançar um novo público, mas sem sucesso.
Devido a esse pequeno contexto do cenário cultural da cidade, torna-se irônico e significativo que um filme do Godzilla seja um elemento de ruptura do status quo, ou pelo menos uma tentativa, já que, mesmo numa briga de capitais, um pequeno elemento disruptivo se inseriu e atingiu uma pequena parcela que na época não conseguiria ter acesso ao filme, e que não teria por muito tempo, já que não havia perspectiva de lançamento em streaming ou DVD tão cedo. No momento em que este texto é escrito, pode-se encontrar o filme na Netflix.
"Godzilla Minus One" é um filme lançado em 2023, dirigido por Takashi Yamazaki e vencedor do Oscar de melhores efeitos especiais em 2024. O filme conta a história de Koichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), um sobrevivente de guerra tentando sobreviver em um Japão fragilizado e destruído pela 2ª Guerra Mundial, junto com Noriko Oishi (Minami Hamabe) e Akiko (Sea Nagatami), duas órfãs por causa dos bombardeios que ocorreram no país. Junto a isso, vem a figura do Godzilla, que persegue o protagonista desde o momento da entrada e saída da guerra, que é o ataque à ilha Odo, que servia como área de manutenção de aviões dos pilotos kamikazes, onde Shikishima estava prestes a realizar sua tarefa pelo país numa guerra já perdida.
A figura do monstro volta ao seu contexto original ao tratá-lo como um símbolo da guerra, um reflexo dos terrores atômicos que assolaram o Japão e causaram um assombro no mundo nos anos seguintes. A própria concepção do design do Godzilla retorna à sua origem ao deixá-lo com um aspecto mais humanoide, referenciando a famosa fantasia do filme original.
A mescla dos efeitos visuais que deixam a criatura como um ser único, junto com a referência humana do original, compõe a complexidade do Godzilla perante a temática do filme e onde ele se encaixa tanto em seu tempo histórico quanto no nosso. O lado humano nos lembra que por trás da criatura está nosso ego, nossas ações que foram evoluindo o lado monstruoso que nos persegue e cobram pelos atos de barbárie da guerra.
O filme é inteligente ao tratar tais assuntos, desafiando o status da guerra e os seus fantasmas, traduzindo-os no protagonista que sobrevive ao ataque do Godzilla logo no início por medo; o medo que o faz deixar de lado a honra absurda de um piloto kamikaze, mas é o mesmo medo que acabou afundando-o na culpa por ter hesitado em atirar no monstro e ter dado uma possível chance de fuga, que mesmo assim seria inevitável.
A construção do trauma vai além da “simples” figura do Godzilla; a ambientação do pós-guerra é crucial para o impacto do monstro e na mística que ele traz consigo. As cidades, casas, barcos, roupas... tudo evoca o momento atual representado pelo tom de reconstrução, que além de ditar a passagem do tempo, mostra a evolução da cicatriz marcada no espaço. O filme foca sempre numa perspectiva que parte do povo afetado, indo sempre do protagonista aos seus companheiros próximos, e por mais que se tenha o envolvimento governamental, nunca o vemos propriamente em ação, apenas delegando suas funções e sentindo as consequências destas.
O diretor, que também assina o roteiro, consegue dar peso a cada ataque do Godzilla; ele sabe ditar o tempo, através da edição e da montagem, na iminência da rajada nuclear que o monstro solta, ao mesmo tempo que o andar desajeitado de um homem na fantasia causa a dor e lembra que a criação tem o lado mais terrível humano, o que é reforçado pela imagem da rosa da bomba que aparece e relembra um dos símbolos e momentos de maior crueldade da ação humana.
O Godzilla é filmado na maior parte como um elemento sombrio, onde peixes são usados como elementos de aviso, construindo o suspense e trazendo a ameaça, que através das caricatas atuações funcionam ao provocar o terror e urgência. A câmera capta apenas partes do monstro em diversos momentos, evoluindo sua presença e consequentemente sua ameaça até chegar ao ponto de filmá-lo por completo e sempre como um ser descomunal perante o ambiente, numa perspectiva de escala entre prédios e elementos geralmente grandes que sempre destacam a imponência da ameaça. Vale ressaltar que ele aparece com tamanhos diferentes em dois momentos, e isso reflete o quanto a ameaça/teste nuclear aumentam perante ao contexto, e com isso a noção da escala com objetos comparativos aumenta, no início com aviões e galpões e posteriormente com prédios numa cidade.
O conjunto entre ambiente e monstro, entre personagens e criatura, constitui um elemento perfeito entre os traumas de uma nação, destacando a crise humana e ressaltando o desleixo dos verdadeiros responsáveis para com os que sofrem das consequências. Godzilla é o nosso monstro, mas ao mesmo tempo é o monstro criado para nos atormentar e destruir. E os traumas de um povo são construídos por uma parcela deste que no fundo não quer lidar com ele.
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Em seu momento mais catártico, o filme traduz e então desafia todo o estabelecido até então. O povo deve resolver a questão do Godzilla, já que o governo não pode mobilizar nenhuma ação militar para não quebrar o pacto de rendição. O trauma deve ser lidado pelo povo, e assim superar por si os terrores, o monstro que lhe foram impostos.
E isso vai além, quando num ato de sacrifício – lembrando que Shikishima era um piloto kamikaze que fugiu de sua missão – o monstro é destruído, mas ao subverter a lógica tradicionalista quando o protagonista consegue se ejetar do avião, o filme reforça a mensagem de desconstrução da elite, dos provocadores, para uma superação do coletivo quanto ao absurdo imposto e causado pela guerra.
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Agora, voltando à pequena história de como o filme foi assistido pela primeira vez, é impossível não pensar no ato de ressignificação das causas provocadas pelo que se pode chamar de sistema, seja ele o da guerra ou o capitalismo moderno. Godzilla é o monstro criado pelo sistema que teve com o povo a ressignificar sua luta a fim de superar seus traumas, assim como o ato de ver o filme foi possível pela luta entre capitais e assim ressignificar que, a partir dessa luta, um pequeno pedaço de cultura se tornou acessível em um local onde é raro acontecer.
O filme de Takashi Yamazaki, lançado em 2023, foi o meu primeiro contato com a criatura de fato, contato este que serviu para derrubar uma imagem preestabelecida de um monstro que até então era só destruição, uma ameaça, que apenas tinha como objetivo imagético a dramaticidade rasa comum nas versões americanas, com um possível toque de ocidentalismo vs. orientalismo.
Essas primeiras impressões me levaram a ter mais curiosidade e a pesquisar mais sobre toda a mística do Godzilla e entender que toda representação de monstro há muito do humano por trás, o que justifica demais o fator regenerativo da criatura demonstrado de maneira gráfica tão excepcional que provoca o temor a cada parte ressurgindo.
"Godzilla Minus One" demonstra que derrotar a criatura é muito mais do que matá-la, mas é um ato de superar e principalmente ressignificar os momentos sombrios para assim buscar um novo futuro, mesmo que ainda se tenha o mostro se recriando, mas que sempre haverá esperança na vontade de viver.